Constituição de Weimar, presente!*

[The Weimar Constitution – Today!]

Marcelo Neves University of Brasília Law School marceloneves@unb.br

A Constituição de Weimar, republicana, mas oficialmente denominada »Constituição do ›Império‹ Alemão« [Verfassung des deutschen Reiches], foi aprovada pela Assembleia Nacional da Alemanha, no Teatro Nacional Alemão, na cidade de Weimar, em 31 de julho de 1919, tendo sido promulgada em 11 de agosto e entrado em vigor em 14 de agosto de 1919. Teve vida curta, durando menos de 14 anos, pois perdeu a sua vigência, embora nunca formalmente como um todo, com o Ato de Autorização de 23 de março de 1933, pelo qual o parlamento concedeu plenos poderes a Adolf Hitler, abrindo »juridicamente« o caminho para o Nacional Socialismo como regime totalitário.

Apesar de sua curta duração, a Constituição de Weimar, com o seu ideário social-democrático, influenciou o constitucionalismo tanto da Alemanha quanto de países estrangeiros, tanto no plano da prática quanto da reflexão teórica sobre o constitucionalismo. No nível prático, por exem|plo, sua influência sobre a Constituição brasileira de 1934 foi relevante, o que foi recuperado no modelo social-democrático da Constituição brasileira de 1946. No plano da reflexão teórica, o debate weimariano no âmbito da teoria do Estado e da Constituição, envolvendo autores como Carl Schmitt, Hans Kelsen, Hermann Heller e Rudolf Smend, entre outros, tem tido relevância até hoje. É verdade que se pode admitir que o caráter excessivamente compromissário da Constituição de Weimar, em uma sociedade dividida entre liberalismo e socialismo, república e monarquia, democracia e autocracia, unitarismo e federalismo, Estado laico e Estado confessional, »escola comunitária (integrada)« e escola confessional, ao viabilizar não só compromissos autênticos, mas também inautênticos – chamados estes por Carl Schmitt de »fórmulas de compromisso dilatórias« (cf. Verfassungslehre [1928], 8ª ed., Berlim, 1993, 31ss.) –, contribuiu para a erosão constitucional. Mas a Constituição de Weimar não pode ser simplesmente considerada, em seu conteúdo, como fator decisivo ou relevante dessa erosão, tendo deixado muito mais para a história do constitucionalismo do que a análise provinciana de Schmitt poderia antever.

Neste ano de 2019, em que se comemoram os cem anos da Constituição de Weimar, dois livros testemunham o significado que ainda tem a experiência constitucional weimariana: Udo Di Fabio nos oferece o seu magistral trabalho Die Weimarer Verfassung: Aufbruch und Scheitern – Eine verfassungstheoretische Analyse (traduzindo livremente: A Constituição de Weimar: advento e fracasso – uma análise teórico-constitucional); Horst Dreier e Christian Waldhoff nos brindam com uma coletânea de artigos por eles organizada sob o título Das Wagnis der Demokratie: Eine Anatomie der Weimarer Verfassung (traduzindo livremente: A ousadia da democracia: uma anatomia da Constituição de Weimar). Ambos os livros são indispensáveis para estudiosos que pretendam se aprofundar no constitucionalismo e na história constitucional. O tema é atual e os livros mereceriam uma tradução para o português.

Udo Di Fabio divide o seu livro em nove partes, além da introdução: 1. »O surgimento da Constituição entre revolução e continuidade«; 2. »Forças ideais incisivas e correntes culturais da República«; 3. »O Presidente do ›Império‹ (da República)« [Der Reichspräsident]; 4. »Economia como destino da democracia«; 5. »Parlamento, partidos, opinião pública«; 6. »O papel do Exército ›Imperial‹« [Reichswehr]; 7. »O caminho declinante: queda do governo de Müller e do governo de Brüning«; 8. »Deformada por cima, enfraquecida por baixo: o fracasso da democracia constitucional«; 9. »Percepções e linhas de desenvolvimento no presente«. Dessa ampla análise, cabe considerar, nesta oportunidade, alguns argumentos fundamentais do autor.

Algumas questões que Udo Di Fabio levanta no início do trabalho servem à linha de raciocínio que guia a sua argumentação teórico-constitucional de base histórica (16): teria sido a posição do Presidente do ›Império‹ na Constituição, especialmente o seu poder de governar com decretos de emergência, responsável pelo fracasso da República de Weimar? Ou teriam sido os plebiscitos, considerados por Theodor Heuss um »prêmio para demagogos«? Ou estaria a falha no sistema eleitoral proporcional sem cláusula de barreira? Udo Di Fabio admite que tais »falhas« foram superadas pela Lei Fundamental de Bonn (16–17, 247), mas não atribui a queda da República de Weimar simplesmente a dispositivos do diploma constitucional. Ele vai além.

Ao considerar, nos diversos capítulo do livro, as principais instituições democrático-constitucionais da República de Weimar, De Fabio é dirigido pela ideia central de que elas não puderam sobreviver à medida que, no âmbito das comunicações relevantes da sociedade, desenvolveram-se condições contrárias à democracia e ao constitucionalismo tanto no plano da estrutura material quando no nível das ideias (20–21). Daí por que ele pondera que »o destino da Constituição de Weimar oferece rico material ilustrativo para insights que são exortação e advertência« (21).

Em sua análise, Di Fabio argui que, nas condições históricas da Alemanha entre 1918 e 1933, »em uma nação que, arrancada dos sonhos, encontrou uma realidade sombria que não deixava espaço para paz«, a »República de Weimar sofreu, quase permanentemente, crises de força considerável« (248). Ele chega então à seguinte tese: »Qualquer ordem constitucional, nessas condições, estaria sob pressão e provavelmente seria deformada« (ibidem). Nessa perspectiva, ele se afasta das narrativas tradicionais ao sustentar que a participação da Constituição na queda da República de Weimar foi diminuta, considerando que muitas das instituições criticadas, como a competência do Presidente de decretar o estado de emergência, poderia, em outro contexto, ter sido utilizada para a autoafirmação da democracia (248 ss.). |

Por fim, Udo Di Fabio rejeita a tese simplista do »fim da história«, disseminada por Francis Fukuyama (247–248), sem negar a fórmula muito citada »Bonn não é Weimar«, título de uma obra publicada por Fritz René Allemann em 1956. Nessa linha, sustenta que »o fundamento da democracia também poderá erodir novamente« se não houver os cuidados necessários para a manutenção das »bases socioculturais e naturais de vida da sociedade ocidental« nas atuais condições críticas em que o extremismo de direita se apresenta como alternativa, inclusive na Alemanha sob a Lei Fundamental (257). Nesse contexto, a experiência de Weimar pode servir como advertência e lição para que se busquem caminhos que evitem um novo desastre que arruíne a democracia na Alemanha e em outros Estados constitucionais.

O livro organizado por Horst Dreier e Christian Waldhoff, apesar de contar com artigos de diversos autores em diferentes perspectivas, oferece uma »anatomia« da Constituição de Weimar que também se afasta da tese tradicional de atribuir simples ou predominantemente ao diploma constitucional a responsabilidade pela queda da República weimariana, enfatizando o contexto social adverso à »ousadia« democrática de Weimar. O livro contém tanto análises do conteúdo da Constituição de Weimar – como o seu conceito de democracia (Gertrude Lübbe-Wolff, 111–149), os seus símbolos estatais (Marcus Llanque, 87–110), os direitos fundamentais por ela protagonizados (Horst Dreier, 175–194), o seu programa social (Michael Stolleis, 195–218), o Presidente do ›Império‹ (da República) (Peter Graf Kielmansegg, 219–240) e o contexto internacional (Ewald Wiederin, 45–64) – quanto do seu contexto social e político – como seu momento histórico (Oliver F. R. Haardt/Christopher M. Clark, 9–44), o discurso intelectual alemão em torno dela (Friedrich Wilhelm Graf, 65–85), a luta pelo direito à igualdade como pressuposto da República (Pascale Cancik, 151–174) e »as velhas elites na nova República« (Monika Wienfort, 241–262). Além disso, o volume inclui uma análise sobre o fim e o ocaso da República de Weimar, de autoria de Dieter Grimm (263–287), bem como considerações sobre as consequências, as lições e as recepções da Constituição weimariana, por Christian Waldhoff, que se refere à »pós-vida da obra constitucional weimariana« (289–315).

Todo o livro é perpassado pela ideia, expressa pelos organizadores, de que »a República de Weimar caiu devido a numerosos fatores entrelaçados e a difíceis circunstâncias: às crises econômicas e às tentativas políticas de golpe, à complicada situação política externa, ao ônus do Tratado de Versalhes, à falta de suporte de um ideário republicano e democrático nas camadas dirigentes – mas com certeza não devido à sua Constituição, até hoje irradiante« (7 – grifei). Nesse sentido, aponta-se para o caráter democrático e inovador da Constituição, que, mesmo em comparação internacional, se destacava, por exemplo, no estabelecimento do direito de voto da mulher e, em geral, na regulação detalhada e em grande parte pioneira dos direitos e deveres fundamentais, assim como no programa de estado social, que não apenas serviram de modelo à Lei Fundamental de Bonn, mas exerceram influência sobre diversas constituições do pós-guerra (ibidem). Nessa perspectiva, o quadro negativo da Constituição de Weimar é rejeitado, para que ela seja »apreciada e historicizada como um desempenho autônomo da história democrática alemã« (Christian Waldhoff, 312).

Os dois livros ora resenhados apontam para o legado positivo da Constituição de Weimar, considerando o seu conteúdo de vanguarda, e para as condições históricas, culturais, políticas e socioeconômicas de sua perda de vigência prática com a tomada de poder por Adolf Hitler e a emergência do Nacional Socialismo. Ante aquelas condições, não se pode sustentar a tese de que o principal fator do ocaso da República de Weimar tenha sido o conteúdo do seu diploma constitucional. Ao contrário, é possível afirmar que a experiência weimariana sugere mais um tipo de »crença no poder transfigurador das fórmulas escritas«, nos termos de Oliveira Vianna (O idealismo da Constituição, 2ª ed., São Paulo [entre outras], 1939, 91). Retirado aqui o caráter conservador e autoritário que Vianna atribui a essa constatação no contexto brasileiro, não há dúvida que qualquer Constituição precisa de um suporte não só na semântica da sociedade (no ideário), mas também nas estruturas sociais. E não há dúvida que, sem uma autêntica revolução de um modelo oligárquico da monarquia até então existente para um modelo constitucional democrático, não estavam presentes as bases institucionais para que esse último modelo pudesse impor-se. Ou seja, faltaram ou fracassaram, com caráter republicano e democrático, as instituições no sentido de Niklas Luhmann (Grundrechte als Institution, Berlim, 1965, 13), entendidas como formadoras da »estrutura dos sistemas sociais«, a saber, expectativas de comportamento estabilizadas e generali|zadas nas dimensões temporal, social e material. A então dominante estrutura dos sistemas sociais não correspondia, em grande parte, ao modelo textual da Constituição de Weimar.

Entretanto, não se devem esquecer o legado da Constituição de Weimar nem as lições da experiência weimariana. No caso brasileiro, em que, desde a Constituição de 1934, o modelo constitucional social-democrático de Weimar tem exercido forte influência, devem-se levar em conta as lições da experiência de Weimar neste momento em que a Constituição de 1988 passa por uma difícil prova de sobrevivência em virtude de um governo populista de extrema direita. Dessa maneira, a favor da manutenção do modelo social-democrático da Constituição de 1988 e contra a tendência autoritária dominante, cabe bradar hoje no Brasil, em relação à Constituição de Weimar, aquele grito que, na América Latina, brada-se nas manifestações políticas, em memória da/os militantes, artistas, cientistas, trabalhadora/es e política/os que lutaram contra as ditaduras das décadas de 1970 a 1980 e foram assassinada/os pelos seus agentes: Constituição de Weimar, presente!

Notes

* Udo Di Fabio, Die Weimarer Verfassung: Aufbruch und Scheitern – Eine verfassungstheoretische Analyse, München: C.H. Beck 2018, 299 p., ISBN 978-3-406-72388-9
Horst Dreier, Christian Waldhoff (orgs.), Das Wagnis der Demokratie: Eine Anatomie der Weimarer Verfassung, München: C.H. Beck 2018, 424 p.,ISBN 978-3-406-72676-7