Lançado em 2018, o premiado Slave Law and the Politics of Resistance in the Early Atlantic World, de Edward Rugemer, professor de história na Universidade de Yale, tem uma tese central: as leis da escravidão são respostas senhoriais para o problema da resistência dos escravizados. Ao longo de sete capítulos que compreendem dois séculos de história (séculos XVII–XIX), Rugemer propõe uma análise dialética entre leis da escravidão e política da resistência, conceito que engloba múltiplas formas de ação organizada, a partir de três sociedades escravocratas de colonização britânica, a saber, as ilhas caribenhas de Barbados e Jamaica, além da Carolina do Sul, na América do Norte.
Considerando a chegada dos ingleses em Barbados como marco inicial da periodização do livro, o autor apresenta a formação da economia açucareira na ilha, a rede de comércio de gente escravizada que se estabeleceu entre África e Caribe, e a produção normativa local que não só ordenou por raça o estatuto jurídico de escravos africanos e servos brancos, como teria até lançado as bases fundacionais da ideologia racial no direito inglês colonial (Cap. 1). Rugemer então passa a descrever o que chama de genealogia das leis da escravidão, discorrendo sobre processos de circulação e empréstimo de normatividades que encadeariam em cascata Barbados, Jamaica e a Carolina do Sul. Todas essas jurisdições produziriam normas em reação causal às constantes fugas e revoltas de escravizados (Cap. 2). Nos termos do autor, a domesticação da escravidão na Carolina do Sul, por sua vez, inclui as lutas das nações indígenas vizinhas à colônia inglesa como variante da política de resis|tência à escravização ou subjugação territorial. Nesse sentido, o autor enumera diversas e consecutivas reformas legais referentes à regulação de estatuto jurídico de escravizados e punição de escravizados revoltosos (Cap. 3).
Em contraste com a administração da Carolina do Sul, Rugemer chama a atenção para a militarização da colonização da Jamaica, onde a concentração de escravizados negros para a de senhores brancos obedecia a uma razão de vinte para um, reclamando regimes legais de vigilância, controle e punição próprios, acrescentando também a repressão armada de comunidades quilombolas (Cap. 4). Conectando os espaços coloniais com a metrópole, Rugemer avança para o surgimento do movimento abolicionista em Londres e seu impacto na continuidade do comércio atlântico de escravizados e nas reformas legislativas das administrações coloniais. Examinando ideias anti-escravistas sobre direitos naturais no parlamento inglês, bem como no judiciário, através da análise do paradigmático caso Somerset, Rugemer explora os usos da escravidão enquanto metáfora e seu espraiamento no debate público na imprensa (Cap. 5).
A reação da classe senhorial na Jamaica e na Carolina do Sul, articulada com seus aliados e financiadores na metrópole, fez das assembleias locais, do parlamento inglês e do congresso do recém independente Estados Unidos da América espaços de produção normativa para uma nova etapa da escravidão, agora encurralada pela combinação volátil da resistência escravizada com a agitação abolicionista e o medo branco da revolta negra de Santo Domingo (Cap. 6). Por fim, Rugemer explora os significados políticos das rebeldias e insurreições de gente escravizada na Jamaica e na Carolina do Sul, matizando as experiências de liberdade das comunidades de negros livres e libertos de Charleston e Kingston, e distinguindo as dinâmicas peculiares de ambos espaços, onde os diferentes pesos políticos e econômicos entre colônia imperial e estado republicano concorreram para a formação de arenas decisórias e normatividades específicas (Cap. 7).
Algumas observações, contudo, se fazem necessárias para examinar a tese central do livro e a ideia-chave de direito da escravidão, que funda e mesmo intitula a obra. É de se notar que o mundo atlântico analisado se restringe aos limites de três colônias britânicas nas Américas, sendo que uma delas tornou-se estado federado republicano com o correr da Era das Revoluções. A perspectiva comparada, portanto, se ocupa de três jurisdições provenientes de uma mesma matriz imperial e jurídica, deliberadamente perdendo de vista a comparação com outras colônias vizinhas e integradas por redes comerciais de domínio francês, espanhol e português, que poderia se mostrar promissora para a análise da circulação de ideias e conhecimento normativo. O mundo atlântico do autor, portanto, não é outro senão fração do mundo anglófono colonial. A literatura que utiliza, 100% formada por livros de língua inglesa, aperta o horizonte de hipóteses e conclusões, constrangido de saída pela deformação espacial arbitrária da perspectiva comparada intra-imperial, enfraquecendo a análise ao não se levar em conta as demais multinormatividades e tradições jurídicas que se emaranhavam, concorriam e se inter-influenciavam no mundo Atlântico. Nesse sentido, o Code Noir francês e o que chama de Iberian law escaparam da metodologia comparativa empregada, aparecendo raríssimas vezes, apenas como referências vagas, dispersas e apagadas. Ainda assim, é notável o esforço que Rugemer faz em ampliar os horizontes da historiografia norte-americana, usualmente auto-referenciada em dilemas próprios de uma espécie de nacionalismo epistemológico.
O argumento central, por sua vez, aposta na relação causal entre políticas de resistência e leis da escravidão. O primeiro conceito abrange ações violentas organizadas, especialmente rebeliões e conspirações, e o segundo conceito refere-se ao exercício do poder senhorial através do caráter repressivo, punitivo e racializado de um corpus legal definido lato senso como direito. Moralmente legítima, a resistência ativa de escravizados impunha aos escravizadores o dever de restituir seus direitos naturais. Estes, todavia, respondiam com sanções violentas que visavam consolidar seus poderes. A dialética entre resistência ativa e leis escravocratas seria então uma disputa por poder que, ao seu turno, refletia a luta existencial entre escravo e senhor. Com isso, o autor optou em definir direito e lei por conteúdo moral, ou como sanção ética, tomando a complexa multinormatividade da escravidão atlântica por uma ideia reificada e essencializadora, que recua, no limite, para o terreno do conflito político ordinário. Assim, uma lei escravocrata, por exemplo, será sempre expressão totalizante do direito da escravidão, independente de sua força normativa ou ressignificação prática num dado contexto local, que poderia transformá-la, afinal, num instrumento de reivin|dicação de liberdade e direitos. Desse modo, ocupado com o exame vernacular de normatividades, resolve o autor que todas as leis da escravidão são respostas senhoriais às resistências violentas organizadas.
Ocorre, porém, que não fica patente a relação direta (e às vezes até indiciária) entre conspirações e as leis que em tese teriam lhes sobrevindo como resposta oficial. Afastada a reificação do direito, pouco resta para se afirmar categoricamente que a produção normativa da escravidão esteja vinculada causalmente à ação organizada dos escravizados. E isso não por insuficiência da hipótese, que se mostra consistente em outras jurisdições, mas sobretudo pelas fontes arquivísticas que o autor selecionou e interpretou. Embora formidáveis para a análise prosopográfica de agentes situados principalmente em repartições burocráticas das colônias, a exemplo da excepcional leitura sobre as redes de lobby político entre Kingston e Londres, bem como suas repercussões na agenda da administração local, Rugemer não cuidou de resistências ativas para além da violência, como eventuais alforrias, pedidos de liberdades, favores e direitos por expedientes administrativos ou judiciários. Não há um único processo de alforria. O leitor não sabe, afinal, se inexistiam tais formas de reclamar liberdade e direitos ou se esses canais estavam franqueados, ao menos para a população liberta. Suas fontes, em grande parte, tratam de despachos, correspondências e instruções de autoridades coloniais, não acedendo para espaços legais (cortes, juízos) onde resistências ativas podem ter assumido, como assumiram em outras jurisdições do mundo Atlântico, demandas de liberdade e reivindicação de melhor estatuto jurídico através do próprio arranjo judiciário e policial local. A política de resistência tal como proposta, reduzida à escala da violência organizada, portanto, parece limitar de uma só tacada a compreensão da resistência dos escravizados e das respostas normativas do direito numa sociedade escravocrata.
Em que pese o fato de apresentar uma visão panorâmica e comparativa intra-imperial restrita à parte do Caribe inglês e à Carolina do Sul, Rugemer aposta na historicização do direito em longa duração como caminho para a compreensão dessas sociedades, o que é uma admirável forma de estudo e interpretação da escravidão e da liberdade no mundo Atlântico.
* Edward Rugemer, Slave Law and the Politics of Resistance in the Early Atlantic World, Cambridge: Harvard University Press 2018, 384 p., ISBN 978-0-674-98299-4