Julgamento em escala Atlântica *

[Atlantic-scale Judgment]

Juelma de Matos Ñgala Max Planck Institute for European Legal History, Frankfurt am Main matos@rg.mpg.de

A obra escrita em francês de Charlotte de Castelnau-L’Estoile com o título Páscoa et ses deux maris. Une esclave entre l’Angola, Brésil et Portugal au XVII siècle, publicada em 2019, na França, persegue os rastros de um processo inquisitorial de acusação de bigamia, através de uma investigação meticulosa baseada nas fontes históricas. A obra de Castelnau-L’Estoile retrata a vida de uma escrava africana, de nome Páscoa Vieira, natural da Vila de Massangano no reino de Angola. Vendida de Luanda para Salvador da Bahia, no Brasil, pelas malhas do tráfico de escravos, e julgada em Lisboa pelo Tribunal do Santo Ofício, sob a acusação de bigamia.

O pano de fundo dessa história intrigante evidenciada por Castelnau-L’Estoile é a estreita interação entre o mundo Ibero-Atlântico (Portugal, Angola e Brasil), com intensas relações econômicas, sociais e culturais, o que é um dos principais pontos da obra. A história de Páscoa é uma ilustração do que a autora chamou de »Angola brasileira« (81), expressão que ressalta a complementaridade entre os dois espaços, do Brasil e de África Central no atlântico sul e reflete a ideia de »comunidade atlântica« (84), mencionada por historiadores como Roquinaldo Ferreira e Luiz Felipe de Alencastro.

O caso particular da escrava Páscoa, mostra conexões impressionantes com pessoas, tempos e lugares, factos e fenómenos históricos, que conduzem a obra para alçada da micro história e da história global, ou como prefere a autora, para uma história das múltiplas circulações (264–266). O processo inquisitorial decorrido entre os anos de 1633 e 1703, tem como figuras importantes para além de Páscoa Vieira, Aleixo de Carvalho, marido de Páscoa em Massangano e Pedro Arda, marido de Páscoa em Salvador. A obra é composta por oito capítulos, dispostos em função dos desdobramentos do processo de acusação por bigamia contra a escrava. A autora desenvolve os capítulos com base no contexto histórico e aprofunda-os a partir de três enfoques principais: a escravidão, a Inquisição e a história da missionação da Igreja Católica e a construção de um espaço de interação em escala transatlântica.

No capítulo 1, encontramos a acusação por bigamia que originou o processo. Páscoa foi denunciada por bigamia ao comissário da Inquisição de Lisboa pelo seu próprio senhor em Salvador, devido ao matrimônio com o escravo Pedro Arda, também pertencente a ele. Na Bahia, a escrava Páscoa foi reconhecida por um parente do seu senhor que frequentava a Vila de Massangano e declarava saber que ela era casada com o também escravo Aleixo de Carvalho.

Segue-se o capítulo 2 com o início dos inquéritos judiciais das 25 testemunhas nos dois lados do Atlântico. A análise de Castelnau-L’Estoile confere ao processo judicial uma notável dimensão atlântica. Através deste processo ela revela ligações importantes entre Angola e Brasil, fundadas na escravidão e na missionação Católica no século XVII. Como argumenta a autora, »comerciantes, soldados, padres e missionários, oficiais da Coroa, capitães de navios e esposas, faziam simplesmente idas ou idas e voltas entre as duas colónias« (85), alimentado de diversos modos os laços entre o atlântico.

O capítulo 3, refere-se ao tribunal de Inquisição, sobretudo o português, aos mecanismos de investigação a procedências das denúncias e às sentenças. Além disso, a autora aborda especificamente o processo inquisitorial de Páscoa, conduzido com o rigor e determinação que caracterizava o Tribunal do Santo Ofício. O processo de Páscoa diferiu dos demais, se considerarmos a dimensão atlântica, os meios e recursos movimentados.

No capítulo seguinte, a autora recua no tempo e retrata a vida de Páscoa na condição de escrava na vila de Massangano, descrevendo o percurso que conduziu a mesma para Salvador. Há também um| interessante retrato das famílias luso-africanas elaborado a partir da trajetória familiar dos senhores da escrava. Ao longo do texto, a autora evidencia as estreitas relações que Páscoa manteve com a família luso-africana, fato que não a impediu de ser castigada e comercializada através das malhas do comércio de escravos em direção ao Brasil.

No capítulo 5, Castelnau-L’Estoile dá voz a Pedro Arda, o segundo marido de Páscoa mostrando a agência do escravo em relação à acusação de bigamia que recaiu sobre a sua esposa. Ela toca também no importante debate das famílias escravas ao mostrar a estratégia do casal para a manutenção da família, Pedro Arda recorreu ao Tribunal Eclesiástico no intento de invalidar a ação de proprietário de escravos.

O capítulo 6, retrata a ordem e a execução da prisão de Páscoa emitida a partir de Lisboa, e descreve a sua desafiadora viagem a Lisboa. A sentença foi lida com a pronúncia de um auto de fé público, aos 22 de dezembro de 1700, e Páscoa condenada a três anos de exílio em Castro Marim, situado no sul de Portugal.

No penúltimo capítulo desta narrativa histórica, a autora aborda os desafios e constrangimentos do casamento entre cativos no caso particular da colônia de Angola e do Brasil no século XVII.

O último capítulo é marcado pelos desafios enfrentados por Páscoa no cumprimento da sentença. Páscoa Vieira não se rendeu ao exílio e após ter cumprido dois anos da sua sentença, recorreu ao Tribunal Inquisitorial solicitando que o restante da pena fosse perdoada, demonstrando a intenção de voltar aos domínios do seu senhor no Brasil. A‍‍‍ esta altura Páscoa havia se tornado livre, no entanto, a tentativa de volta ao local do antigo cativeiro poderia estar relacionada ao intuito de reencontrar a família.

Não seria repetitivo dizer que a obra de Charlotte de Castelnau-L’Estoile, para além de interessante é meticulosa. Escrita a partir do processo da Inquisição nº 10026, com 114 folhas, disponível no‍‍‍ acervo do Arquivo Nacional Torre do Tombo de‍‍‍ Lisboa, a obra confirma a importância do uso das fontes judiciais na investigação histórica acerca da escravidão. Tal como argumenta a autora, »a vida de Páscoa é exemplar para os historiadores da escravidão, pois ela conheceu diferentes formas da escravidão, primeiro em Angola com o seu senhor português e depois no Brasil« (125).

Não obstante a escravidão e o tráfico constituírem temáticas amplamente debatidas pela historiografia brasileira e africana, a obra levanta importantes questões que permanecem atuais, referentes ao matrimónio e à família escrava. Para a historiografia de Angola, esse representa um campo de estudo pouco aprofundado, onde várias questões ainda estão por ser levantadas, tais como a disposição do escravo em relação ao matrimônio e à família, os desafios e constrangimentos das famílias constituídas por pessoas de diferentes categorias jurídicas, o conceito e o entendimento de família e a manutenção do matrimónio e da família diante do tráfico e da escravidão.

Estas questões têm sido discutidas na historiografia brasileira por autores como Robert Slenes, José Motta, José Roberto Goés, Sheila Faria, Hebe Mattos, Manolo Florentino e Sidney Chalhoub. Estes historiadores evidenciaram novas leituras das relações escravistas, sendo possível observar uma série de negociações que permitiram aos escravos constituir famílias, redes de parentesco e sociabilidade, ainda que sempre ameaçados pelo poder senhorial.

Outra questão importante argumentada pela autora e demonstrada no processo de Páscoa através dos inquéritos às testemunhas, é que um escravo comercializado de África para as Américas não perdia necessariamente a sua rede de contactos e a ligação com as suas origens.

O caso de Páscoa apesar de ser incomum, não foi‍‍‍ uma exceção do ponto de vista da manutenção do contacto com a África. Alberto da Costa Silva, na obra »Laços Atlânticos«, argumenta que »ao desembarcarem no Brasil este ou aquele escravo podiam topar outros do mesmo reino, da vizinhança de sua aldeia, do seu mesmo vilarejo e, alguma vez de sua mesma linhagem, e passavam-lhe as notícias do outro lado do mar« (33).

Quanto à bigamia, a autora argumenta que a prática por mulheres escravizadas, pode ser analisada como um modo de reconstruir a vida num lugar estranho, como uma forma de integração e de melhoraria da condição social. Alguns autores também apontam a bigamia como forma de resistência à dominação social à escravidão e ao tráfico, essa perspectiva conduz para um campo de estudo pouco explorado que é a bigamia em relação ao gênero e à escravidão em Angola.

A obra de Castelnau-L’Estoile, para além de dar voz a uma mulher negra e escrava no século XVII, foge de um defeito de ótica alimentado por muitos historiadores e por um longo período, no qual o lado africano ficou esquecido, como se a vida do| escravo começasse no navio negreiro. De fácil leitura e compreensão, a obra restitui o humanismo e dá significado à vida de uma mulher escravizada, comercializada, julgada e condenada por bigamia no século XVII.

Notes

* Charlotte de Castelnau-L’Estoile, Páscoa et ses deux maris. Une esclave entre l’Angola, Brésil et Portugal au XVII siècle, Paris: PUF 2019, 302 p., ISBN 978-2-133-081297-5