Nesta resenha, analiso duas publicações sobre a histórias das mulheres, questões de gênero, perspectivas globais e a história do império português. Colocando esses campos em perspectiva e explorando as ferramentas proporcionadas pelas publicações, exploro novas possibilidades abertas pelos livros e proponho o desenvolvimento de um novo campo – uma história do direito das mulheres a partir de uma perspectiva global, usando como ponto de partida a história do império português. Como historiadora do direito, as razões que me motivam a aproximar as obras que vou analisar partiram do questionamento sobre como a história do direito pode nos ajudar a desenvolver uma história das mulheres e de gênero a partir também da influência da história global.
O primeiro livro em análise é um compêndio sobre a história de gênero global, a segunda edição de um compêndio de 2004 (A Companion to Gender History). A edição mais recente, entretanto, insere a palavra »global« no seu título; assim como também atualizações dos artigos já existentes; sete novos artigos e uma introdução sensível a questões políticas, que inclui uma reflexão acerca dos impactos da pandemia de Covid-19 na vida diária de pesquisadores, a produção acadêmica das mulheres, as desigualdades e os desequilíbrios produzidos. O livro possui 36 artigos escritos por 37 autores. Dois deles homens, e apenas oito estão afiliados a instituições fora dos Estados Unidos.
O resultado é um livro organizado em duas partes. A primeira reúne temas e conceitos relevantes para os estudos de gênero sexualidade, trabalho, família, mitos e rituais, raça e diferenças, cultura material, arte visual, revolução e anti-imperialismo e movimentos feministas. A segunda parte está organizada por ordem cronológica-geográfica, que inclui estudos desde as mais antigas sociedades (100,000 BCE) até o período posterior à segunda guerra mundial em diversos locais do mundo.
Os artigos, de um modo geral, e a inserção da expressão global na nova edição, refletem a mudança nos estudos de gênero e na história das mulheres dos últimos 30 anos: a tendência a se »fazer« essas disciplinas considerando os processos globais, acentuando uma crítica às interpretações eurocêntricas e anglofônicas, às experiências »ocidentais« e colonialistas. Os artigos reforçam a ideia de que não há generalização possível de ser feita em relação ao gênero e que esse deve ser estudado e considerado sempre em uma situação relacional que envolva questões de classe, sexualidades e orientação sexual, etnia, religião, raça e outras categorias de diferença e dá ênfase às questões de colonização e influências imperiais à da agência e opressão das mulheres. Ressalta-se sempre, implícita ou explicitamente, que cada aspecto da existência humana é tocado pelo gênero; no âmbito social está refletido na família, no trabalho e no lazer, nos padrões de casamento e nas diferenças de classe. Deu-se que, ao longo do tempo/história, as experiências humanas foram moldadas por »princípios« de gênero, seja através da história política, militar e jurídica, da antropologia, dos estudos culturais seja nos usos simbólicos e metafóricos de categorias.
Mas, se esses conceitos e ideias são identificados de maneira fácil, pontualmente, em uma linha do tempo ou em locais (geográficos) específicos no livro, as interconexões que caracterizam o global e |seu intenso debate teórico em busca de definições e características não são exatamente estabelecidas. Ou seja, os artigos não estão conectados, cumprindo sua função de compendiar a informação em coleção, de forma séria e com uso amplo de fontes, mas que não dialogam diretamente com a mais recente discussão sobre história global.1 Entretanto, trazem, de modo tangencial, à obra inteira, a expressa crítica, tão cara aos estudos globais, ao eurocentrismo e ao colonialismo. Os artigos esboçam, de modo geral, um puzzle da história global que não se encaixa, deixando à dúvida a sua pertinência contextual teórica, mas mostram, ao mesmo tempo, a relevância das peças avulsas de qualidade e sua importância historiográfica através do uso das mais diversas fontes: tradições textuais (religiosas, médicas, normativas, leis), cultura material (terracota, vestidos, bicicletas, tecidos), mitos e rituais, imagens, restos do corpo humano, sepultamentos, vestígios químicos, objetos em geral, leis, normas, ideias, entre muitos outros.
Eu vejo a aproximação dos ramos em questão, a história global, a história das mulheres e os estudos de gênero, a partir de duas possibilidades, ou de dois caminhos a serem considerados para se justificarem, que são: a aproximação teórica dos campos para a construção de uma disciplina que tem sido denominada de várias formas2 – esforço que surgiu a partir do trabalho de pesquisadores como Peter Stearns, Sarah Hughes, Bonnie Smith, Judith Zinsser, Margaret Strobel e a própria Merry Wiesner-Hanks, que edita o compêndio –, em segundo lugar, mas não por ordem de importância, os encontros e as reivindicações internacionais feministas, particularmente acentuados no século XX.
Nesse último século, a agenda feminista passou a incluir mais mulheres das Américas Central e do Sul, África e Ásia, trazendo mais diversidade e novos problemas ao movimento feminista que crescia a um exponente mundial. Novos termos passaram a ser considerados, incluindo não apenas uma luta pelos direitos internacionais das mulheres, mas a criação de redes transnacionais e de uma história internacional das mulheres. Essa »consciência internacional« sobre as reivindicações das mulheres e as questões de gênero podem ser destacadas em encontros como o Congresso Internacional das Mulheres de 1915, passando pela Declaração das Nações Unidas da década das mulheres (1976–1985) e a Convenção pela Eliminação de todas as Formas de Discriminação (CEDAW), e até nos movimentos mais recentes como o MeToo e a marcha feminista contra a eleição de Trump.
A agenda feminista e os estudos de gênero convergiram com a história global, abrindo espaço para um novo campo. Assim como temos ainda hoje um constante debate acerca da sua própria caracterização, a inclusão das mulheres e das questões de gênero na história mundial ou, em uma perspectiva global, tem crescido e proliferado. As justificativas e conexões envolvem questões inerentes às próprias críticas ao eurocentrismo, do foco no »Ocidente«, e de uma necessidade de perspectivas transnacionais (como o feminismo transnacional e a presença das mulheres de terceiro mundo, por exemplo) na escrita da história. Esse novo campo tem tidos vários focos: examinar e integrar a história de todos os países ou locais do mundo, enfatizando e relativizando os Estados Unidos e a Europa, e usar algumas áreas menos favorecidas pela historiografia, passando pela comparação das experiências das mulheres de vários locais diferentes até a discussão de certos tópicos ou conhecimentos específicos do campo. Juntando perspectivas, esse novo ramo tenta dar sentido a conceitos da história global a partir da experiência das mulheres, das sexualidades e das questões de gênero em torno de vários eixos: encontros, fronteiras, migração, transnacionalismo, pós-colonialismo, identidades regionais e nacionalismos. A partir da novidade trazida pela abordagem, pergunta-se, também, como as questões de gênero moldaram os impérios e |influenciaram opressões tendo em considerações particularidades globais e locais.
O novo campo, entre todas essas possibilidades, está longe de uma delimitação estática, o que deve ser visto positivamente pelo debate que gera. Mas, haveria ainda algo inovador a acrescentar diante de tantas divergências? Existe uma inovação que continue a sustentar a importância da condução da narrativa histórica para o campo das experiências críticas, distante de processos históricos sem agentes e abstratos, que repetem cotidianamente tópicos acríticos comuns de séculos atrás? Quais caminhos podem continuar sendo abertos sem cairmos nas armadilhas que criticamos?
Para introduzir minha proposta de inovação, passo agora a analisar o segundo livro anunciado.
Gendering the Portuguese-Speaking World é uma coletânea de artigos sobre gênero no mundo português falante em um longo espaço temporal, desde a Idade Média até o presente. O volume é editado pelo Professor Francisco Bethencourt, um dos historiadores mais influentes da história da expansão ultramarina portuguesa e de outras questões sensíveis à história dos impérios, como racismo, gênero e cidadania.
O volume é uma preciosidade: a introdução e a conclusão, escritas pelo Professor Bethencourt, endereçam com precisão as discussões mais atuais das teorias de gênero e colocam em perspectiva artigos sobre história das mulheres, homens, masculinidades e gênero. O livro possui 12 capítulos divididos em duas partes: uma sobre Portugal e o Império; a segunda sobre a modernidade e o período pós-colonial. A obra coloca inteligentemente, como corte de sistematização, a colonização portuguesa, sendo que as teorias pós-coloniais são exploradas em ambas as partes.
A primeira parte traz artigos sobre Portugal continental, os quais exploram a construção da masculinidade através do estudo do cavalheirismo e da feminilidade nas cortes; uma análise do patriarcado português em relação a outros patriarcados da Europa e sua conexão com o cotidiano das mulheres e com a luta contra um patriarcado que não pode ser considerado fixo. No campo das religiosidades, um artigo trata da vida conventual de mulheres em Lisboa, sob o argumento de que a reclusão feminina conventual não foi literalmente seguida em Lisboa. As fontes revelam casos quase como imagens de uma vida muito mais personalizada e livre nessas instituições, através das visitas recebidas, das festas, além dos contatos das freiras com o mundo exterior para manter seus direitos e proteger suas economias, na escrita de cartas e poesias.
Para além do continente, há artigos que analisam as diferenças de gênero em várias partes do Império, como Brasil, Goa, a bacia do Zambeze, Angola, Malabar, Etiópia, outros locais no oceano Índico, mostrando, por exemplo, que estruturas jurídicas encontradas em Portugal não podem ser generalizadas pelo Império porque esses espaços não eram meros depositórios de instituições de Portugal (embora, por vezes, os exemplos escolhidos concentrem-se apenas em direitos garantidos, como o direito de testemunhar, de ser testemunha e de serem dotadas ou não, ou, então, analisa e generaliza leis, como as Ordenações Manuelinas). A questão central e de grande valor diante das fontes é saber como os portugueses lidaram com as relações de gênero nessas localidades e, como bem menciona um artigo sobre o Império, a necessidade de uma definição de mulher em contexto, comparada aos papéis sociais atribuídos a homens e mulheres. Também há casos de práticas de casamento, adultério, diferentes tipos de constituições familiares, agência econômica e militar das mulheres nos locais antes da chegada dos portugueses, mostrando que elas estavam ativamente envolvidas no comércio e na guerra (mas esses casos foram encontrados mais na literatura da época e menos em situações práticas). Outros textos exploram questões de linguagem e a importância das bibliotecas de mulheres.
A segunda parte retrata questões de pós-colonialismo na construção do serviço público de saúde de Angola e Moçambique; experiências transgênero em Moçambique contemporânea, através da análise do discurso; conexões literárias de obras clássicas em Portugal e no Brasil, para explicar questões queer e a homofobia no Brasil e em Angola do século XIX; a análise literária de obras angolanas no fim do século XIX e no início do século XX e a resistência feminina na elite luso-africana em momentos determinantes da colonização e, por fim, um artigo sobre as experiências reprodutivas de mulheres que não correspondem às categorias normativas mais aceitas em Portugal, no século XXI, como os pais transgênero e as mães lésbicas.
Assim, no todo, essa obra tem uma importância significativa no desenvolvimento da história das mulheres, masculinidades, sexualidades e gênero em Portugal e em outros países relacionados a |Portugal, por causa da colonização e da expansão ultramarina, por questionar a construção da história sob uma perspectiva de gênero e de interpretações e uso de fontes que refletem questões de gênero na atualidade.3 O livro representa uma perspectiva de longo termo, sem necessariamente ter a ambição de representar todas as partes do mundo, de forma conectada e crítica em relação ao imperialismo e às consequências do colonialismo.
Ademais, o livro coloca em diálogo várias linhas historiográficas dentro do estudo de gênero e das sexualidades em Portugal, Brasil, Angola, Moçambique e outros locais que tiveram contato com esses países em decorrência da colonização e construção (plural) do império, principalmente, em relação à homossexualidade, às pessoas transgênero e às identidades queer. A obra atualiza a discussão teórica sobre os países envolvidos incluindo, de fato e como é mencionado, tópicos pouco estudados nesses lugares.
Sendo esses locais colocados em perspectiva, Portugal não aparece no centro, mas como conexão. Refletindo décadas de discussões historiográficas acerca da centralidade do Império (as discussões acerca da relação centro-periferia, por exemplo), o livro faz, com muita sutileza, a conexão entre o global e o local, enquanto os artigos transitam em relatar experiências de pessoas reais no passado e a caracterizações de fontes mais gerais sobre o império.
Mas, afinal, e o que isso tudo tem a ver com o direito?
Se eu iniciei por dizer que sou uma historiadora do direito e como tal iria analisar os livros escolhidos, vou, então, complicar esse entrelaçamento de campos e perspectivas para perguntar: e o direito? Como o direito é representado e qual o seu papel na construção das disciplinas da história global das mulheres e de gênero e da história das mulheres, sexualidades e gênero no império português?
Vou usar, como ponto de partida, a identificação do tratamento do direito nas obras em questão. No compêndio, há várias maneiras de identificar as menções ao direito nos diferentes artigos. Muitas vezes, os autores recorrem ao uso de generalizações a partir de leis emblemáticas, específicas e simbólicas (código de Hamurábi, leis de Justiniano, código napoleônico, código islâmico de família, código Tang, código legal de 1858 do império otomano, código civil germânico, código soviético da família de 1919, constituição mexicana de 1917, constituição da Índia de 1950, lei de Allah, constituição Japonesa de 1889, lei sálica, lei revolucionária de 1994, entre outros). Por outro lado, o uso do termo legal se dá em diversas conotações: instrumentos, barreiras, existência, exclusão, direitos, restrições, preocupações, registro, status, estruturas, processos, regimes, código, administração, matérias, estudiosos, textos, instituições, termos, pano de fundo, espaço. Já o termo law refere tanto ao direito de alguns locais, países ou grupos (direito islâmico), como a sistemas específicos (direito canônico, direito comum, direito natural, direito romano, direito de família, direito costumeiro).
Portanto, o uso e a compreensão do direito variam entre os artigos. Mas, no geral, o direito não é expressamente mencionado ou objeto de atenção primeiro do estudo, aparecendo paralelamente. O único capítulo que trata especificamente do direito e da política (cap. 4) condiciona a conceptualização do direito e da política às relações familiares, sexuais e de gênero. Entretanto, o direito aparece sempre associado, resumido e atrelado à política e aos ditames do patriarcado. Há uma instrumentalização do direito pela ordem política e uma manipulação dos casamentos, dos dotes, do comportamento das esposas e do legado das viúvas, por exemplo, por homens poderosos. Grande parte do artigo, nesse sentido, está dedicado às descrições das mulheres de um ponto de vista da filosofia política (Machiavel e Locke), ou da atuação delas na Revolução Industrial. Há leis mencionadas em várias partes da Europa, mostradas descritivamente, mas, ademais, a sua conexão é feita por um destaque dos direitos das mulheres, que foram excepcionalmente conquistados por mulheres da elite ou das classes que governavam.
Outra maneira de retratar e abordar o direito (cap. 3) é mostrando a imprecisão da utilização de |códigos legais para entender a sociedade, acentuando a necessidade de se virar para a prática. Assim, existe uma simplificação entre direito e lei, estando o campo das práticas fora do entendimento do direito.
O comportamento das mulheres é colocado em perspectiva em relação à letra da lei, quando destoam, e não como condicionante que precisa ser analisada diante de vários outros eixos de análise – aqueles mesmos levantados em várias outras partes da obra pela interseccionalidade. Portanto, um outro problema que surge é a generalização dos agentes, do direito e da elite, como se o poder só fosse desafiado pelas mulheres dessa condição (cap. 5).
O capítulo 17, que menciona em um subcapítulo as estruturas legais da Europa medieval, tem uma introdução resumida sobre sistemas legais e direciona o seu foco para a análise do dote e do preço da noiva. Explica como várias tradições jurídicas (germânica, romana, judia e os costumes locais) foram manipuladas para regular os casamentos e a transferência de propriedade, direcionando sua análise para direitos específicos como garantias que podiam ser conquistadas (divórcio, poder realizar transações comerciais, ter bens e posses).
O capítulo 22, afinal, o único capítulo que explora a história e influência do império português, refere-se à capacidade de adaptação das mulheres aos sistemas legais estrangeiros nos contextos coloniais. O argumento defendido é que as mulheres se acomodaram ao imperialismo europeu, ao usar sistemas legais para protegerem a si mesmas e as suas famílias e propriedades. Apesar desta posição indicar uma interpretação que privilegia a ação das mulheres, sem ser apenas aquelas das elites, o direito manipulado é compreendido como um sistema estrangeiro, fixo, que é trazido de fora para uma nova sociedade.
Outra possibilidade explorada é o papel do chamado direito costumeiro (customary law), mencionado no capítulo 23 (em contraposição ao direito europeu, que é só »direito«). Embora o imperialismo em várias partes de África, tenha favorecido a continuação do que chamaram de direito costumeiro sob o poder dos chefes locais, ao mesmo tempo, aproveitou para congelar alguns desses direitos que eram mais convenientes à política colonial como tradição. O mesmo argumento é utilizado no capítulo 26 para mostrar como os britânicos escolhiam o direito costumeiro da Índia que lhes favorecia para argumentar que a criação de suas leis melhorava a condição da mulher indiana.
Já nos sistemas legais muçulmanos (cap. 24), as mulheres aparecem exercendo papéis ativos em tribunais islâmicos, exigindo direitos demonstrados por processos dos séculos XVIII e XIX do Cairo, Alepo, Damasco e Istambul. O texto reconhece que a vida jurídica nos tribunais é apenas uma parte por onde a relação entre as mulheres e o direito pode ser analisada, com destaque para a atividade econômica das mulheres.
No segundo livro, o termo legal (em inglês) aparece relacionado com: mecanismos, estrutura, sistema, adoção, posse, responsabilidade do menor, aborto, direitos, reconhecimento, modelos, guardiões, testamento, supervisão de homens, esposo, transformações, guarda, separação, documento, status, práticas, reconhecimento, documento, espaço, transações. Enquanto que law está associado ao direito costumeiro, à lei mental, lei racial, códigos legais, lei (no geral), lei portuguesa, leis sobre herança e propriedade, direitos garantidos pela lei (nas Ordenações), direito português, direito canônico, lei da natureza, direito civil, lei tridentina, leis do indigenato, leis trabalhistas, lei de aborto, leis sobre reprodução.
Perpassam aí várias compreensões do direito: a de que institutos jurídicos não eram simplesmente transplantados às várias partes do império, até os direitos específicos das mulheres (legal rights), que podem ser conquistados.
Professor Bethencourt finaliza ao dizer que a sexualidade, a diversidade relacional e a definição de gênero são importantes e impactam, entre outros, o quadro legal (legal framework). Mas, aponta para uma diferenciação entre quadros europeus legais e religiosos (5); estruturas legais e sociais (9); a ideia do direito costumeiro em espaços coloniais (9) e, finalmente, que os direitos das mulheres estavam estabelecidos desde a Idade Média (267).
Nas duas obras, portanto, embora não sejam obras da história do direito ou que proponham a análise do direito, servem como ricos pontos de partida e de apoio para repensar possíveis caminhos que aproximem a história global das mulheres e de gênero, a história de Portugal, do império português e da colonização portuguesa e à história do direito.
Mas, qual direito? Um direito que não seja apenas ditado pela política e pelo patriarcado, que não seja manipulado apenas por mulheres da |elite; ou, sendo de outras condições, não apareçam como manipuláveis por serem estrangeiros; e caso sejam estrangeiros, não se resuma ao costumeiro nem ao isolamento. Por fim, um direito que não se separe do social, das práticas, da religião, do costumeiro, nem seja caracterizado por direito fixos pelos quais se luta – ideia muitas vezes anacrônica, porque atribui uma ideia de direito à conquista de direitos específicos que só surgem nesse formato, após as revoluções liberais.
É preciso um movimento que compreenda o direito de forma dissociada de uma concepção moderna e legalista. Se os estudos de gênero e a história global avançaram em criticar as construções nacionalistas e as perspectivas eurocêntricas, se a junção dos campos prosperou, isso foi possível apenas através de um entendimento e uso diferente do que significa lei, normas e direito.
Por isso, eu proponho como ponto de partida repensar o direito no início do período moderno. Um direito que não passou ainda pelos nacionalismos, não está atrelado ao estado-nação e não tem uma única fonte ou é produzido por um único ente. O direito, assim, tem várias jurisdições a que se pode recorrer e aplicar, não depende unicamente, nem de perto, de leis escritas, tem na sua caracterização forte influência da religião e é igualmente produzido e discutido nesse âmbito.
O direito precisa, assim, superar a separação entre o que estava escrito em documentos e as práticas das mulheres (prática e teoria) e negar-se a explicar o comportamento e as atitudes das pessoas através de uma excepcionalidade diante desses documentos escritos (o que era a regra no início da modernidade). Descumprir a lei não é sempre exceção, ato de rebeldia ou excepcionalismo, mas parte da ordem de um mundo que entendia o direito para além de leis escritas – leis que podiam ser descumpridas com o aval do rei e sua graça, por exemplo, ou que consistiam em traduzir normas religiosas na sua prática. Mas, acima de tudo, esse direito era vivo e estava constantemente em mudança, seja pela ação das mulheres, seja pelas discussões de juristas letrados, ou da aplicação de juízes pouco letrados ou de um bispo em um constante processo de tradução cultural que reflete reproduções sociais. Tal direito não garantia direitos específicos, mas era flexível segundo o status, ou o estado das pessoas no mundo, seu gênero, seu ofício, sua liberdade, sua posição na família e suas condições financeiras ou de nobiliarquia.
Portanto, o que esta proposta leva em consideração e acredita ser primordial na construção do novo inclui seis passos ou componentes. Primeiro: tem sido comum retratar a história global das mulheres e de gênero como a história de pessoas ficando mais conectadas, como um processo linear de globalização proporcionado pela Europa. Essa perspectiva reforça problemas antigos de generalização de uma mulher, ou de que as mulheres são iguais e facilmente identificáveis, ou que dialogam de forma idêntica e compartilham os mesmos desafios. Uma nova perspectiva global pode ser uma alternativa para superar a criticada ideia de uma mulher só, representativa: a mulher indiana, a mulher do Brasil colonial, a mulher na América Latina, etc. Pode-se, assim, evitar a essencialização das mulheres e das categorias de gênero em geral. Ao mesmo tempo que resolve o problema da generalização, também pode apresentar alternativas aos problemas da regionalização extrema. Isso quer dizer que se deve levar em conta o local e suas próprias construções de gênero e sua inserção em uma escala transnacional.
Segundo: uma história global das mulheres e de gênero pode retirar o foco da história das mulheres das questões reducionistas da família e da vida privada; ao mesmo tempo, pode resolver o problema das visões equivocadas da redução da história global aos estudos de área.
Terceiro: é preciso proporcionar novas organizações temporais que não se assemelhem àquela tradicional europeia de periodização da historiografia. Esse ponto reforçaria a luta contra o eurocentrismo, porque é sempre a organização europeia de períodos históricos que se utiliza. Visa-se, assim, mudar finalmente o foco das grandes narrativas da história, que muitas vezes são descritas sem agentes ou estão profundamente focadas na história de grandes atores homens.
Quarto: compreender o direito da maneira proposta pode também revolucionar o uso de temas analíticos mais amplos. Tem sido repetitivo como o uso de lugares tópicos como religião, economia, direito e política, império, colonialismo, resistência, revolução, patriarcado, trabalho, cultura (material, visual) são sempre utilizados. Pensar o direito, suas jurisdições e suas normatividades – que incluam princípios, discursos, práticas, instituições e regras – cria oportunidades para análises tópicas mais complexas e inovadoras.
Quinto: é necessário compreender o direito sem fazer comparações anacrônicas, sem reduzir a his|tória global e o direito a meras relações de um direito independente e desenvolvido de certo lugar em comparação aos costumes dos outros; sem confundir o direito como um mecanismo político; e sem associar o direito apenas a leis icônicas, mas, principalmente, afastar a insistência na busca dos direitos das mulheres ou como elas foram excepcionais no passado.
Sexto: Usar, como ponto de partida, outras configurações geográficas, que sugiro, inicialmente, ser a história do direito no Império Português. Se continuarmos a colocar o maior número possível de lugares enquanto fazemos a história das mulheres e de gênero a partir de uma perspectiva global, continuaremos mantendo a falta de conexão e a comparação – assim, serão sempre lugares aleatórios. Mas, escolhendo tal caso, poderíamos mostrar situações locais dentro de uma estrutura global. Processos globais poderão ser rastreados em diferentes partes do mundo, mas serão sempre diferentes nos cantos do Império. No entanto, o movimento contrário é essencial para quebrar também as correntes do eurocentrismo e das historiografias nacionalistas. Trabalhar em detalhes com esses locais, seus arquivos (locais) e uma variedade ampla de fontes pode ajudar a decifrar o silêncio dos arquivos sobre gênero e sexualidades, criar leituras sofisticadas e mais precisas da história do direito para além dos enfoques reducionistas nas leis ou no reclame de direitos (numa acepção moderna); e até mesmo renovar as necessidades pós-coloniais, descoloniais e decoloniais por sua proximidade com os espaços locais e com a voz das mulheres (sem que haja alguém »que fala pelo subalterno«).
Mas essa é apenas UMA das possibilidades, ou um dos direitos. Faz-se urgente abrir espaços para outras narrativas normativas que expliquem como outros sistemas de gênero foram construídos diante de outros direitos. O »outro« não pode fazer parte do costumeiro; e o direito não pode focar apenas nas descrições de leis ou nos sistemas europeus.
Retomando a relação entre gênero e história desenvolvida pela revolução feita pelo artigo de Joan Scott, eu defendo que o gênero não é apenas uma categoria de análise histórica que reflete as relações de poder, mas um vetor de análise essencial da história global, que pode revelar as construções e conexões de sistemas de construção de gênero. Nela, a história do direito pode desenvolver-se como uma desafiadora maneira de explicar, de forma inteligível, as particularidades da relação entre o local e global. E, nestse olhar, próprio para o passado, o caso do Império Português pode servir como o elo de conexão e comparação (em opção a escrever sobre todas as partes do mundo), de modo a respeitar a asserção de que o gênero enquanto sistema é uma criação, de que o biológico é dado e pertence a um conhecimento que foi também em si construído e sistematizado.
* Teresa A. Meade, Merry E. Wiesner-Hanks (eds.), A Companion to Global Gender History. 2nd edition, Hoboken (NJ): Wiley-Blackwell, 654p., ISBN 978-1-119-53580-5; Francisco Bethencourt, Gendering the Portuguese-speaking World, from the Middle Ages to the Present, Leiden: Brill 2021, 288p., ISBN 978-90-04-45672-3
1 Nesta resenha não vou entrar nos pormenores da diferenciação teórica entre história mundial e história global, incluindo o intenso debate sobre sua constituição, características e metodologias, não por desmerecer sua importância, nem confundi-las pelo mesmo, mas para utilizar o limite de palavras para direcionar o argumento da proposta.
2 Gender in World History; Women in World History; A History of Women in the World; Envisioning Women in World History; Gender Systems in World History; Engendering World History; Gender at the Base of World History; World History and the History of Women; Gender and Sexuality; Global Gender History.
3 Novamente, aqui, por uma questão de espaço e pertinência não vou me concentrar em mostrar como a história das mulheres e de gênero tem sido desenvolvida no contexto da história de Portugal e de sua colonização.