Trazendo o Estado de volta à América Latina?*

[Bringing the State Back in Latin America]

Alain El Youssef Universidade de São Paulo alaeyou@gmail.com

A publicação de El tribunal de la soberanía é, certamente, uma importante contribuição para o entendimento do processo de formação dos Estados nacionais na América Latina. Organizada por Marta Irurozqui, a coletânea busca combater a imagem largamente difundida de que teria havido uma »omnipotencia del Ejecutivo« (18) na conformação das principais repúblicas da região ao longo do século XIX. Os textos que compõem o livro procuram, dessa forma, reforçar que os congressos nacionais dos países latino americanos se constituíram em »un actor político medular« (15), especialmente no que diz respeito a »la comprensión y el ejercicio públicos de la soberanía popular« (11).

Para tanto, o livro está dividido em oito capítulos, que abordam de forma mais ou menos cronológica a atuação parlamentar em importantes episódios que marcaram a formação dos principais Estados nacionais oriundos da desagregação da América espanhola. No primeiro capítulo, Laura Martínez Renau analisa o Congresso Cisplatino de 1821 e suas implicações para a incorporação da Banda Oriental ao Império do Brasil. No segundo, Elvira López Taverne mergulha no Poder Legislativo para avaliar seu papel no cenário turbulento que marcou as primeiras décadas do Estado chileno. Em seguida, Nely Noemí García Corona recorre à prosopografia para refletir sobre o papel dos clérigos no Congresso do estado de Michoacán durante as crises políticas da Primeira República federal mexicana. No capítulo mais extenso da obra, Inés Quintero e Rogelio Altez se debruçam sobre os debates parlamentares que levaram à dissolução da unidade colombiana, de modo a verificar os princípios sobre os quais a República da Venezuela foi fundada em 1830. Na sequência, o livro retoma a discussão sobre o México com um texto de Marco Antonio Landavazo que aborda as concepções de soberania em confronto durante os momentos críticos que marcaram a fundação da república federal no país. No sexto capítulo, a organizadora da coletânea toma o caso das eleições de 1840 para repensar o papel do Legislativo na construção de uma determinada visão de legalidade eleitoral na Bolívia do século XIX. Na sequência, Víctor Peralta Ruiz analisa as disputas travadas de 1855 a 1860 entre o Executivo e o Legislativo peruanos pelo protagonismo político dentro da nova conformação nacional. E fechando a obra, Flavia Macías e María José Navajas avaliam as estratégias utilizadas por deputados e senadores argentinos no biênio 1892–1893 para salvaguardar as garantias constitucionais e a autonomia das províncias que haviam sofrido intervenção do Executivo.

Em seu conjunto, os artigos que compõem a coletânea são muito bem sucedidos em demonstrar a centralidade do Poder Legislativo para a história política latino americana do século XIX. Por estarem geralmente concentrados em disputas e conflitos travados entre o Executivo e o Legislativo de cada país – notadamente, Banda Oriental (futuro Uruguai), Chile, México, Venezuela, Bolívia, Peru e Argentina –, os textos deixam evidente a existência de um fenômeno mais amplo que percorreu o processo de formação das unidades políticas da região: o papel fundamental dos congressos, especialmente nos momento de crise, para a conformação dos arranjos institucionais dos Estados na América Latina.

No entanto, a principal contribuição do livro carrega consigo aquelas que podem ser consideradas suas principais fragilidades. Como bem destacou Marta Irurozqui na introdução, os congressos latino-americanos do século XIX constituíam »espacios dinámicos de comunicación de lo político y lo público«, na medida em que os debates transcorridos dentro de seus recintos se alastravam pela »prensa« e pelas »tertúlias en la calle, locales o salones« (16). Esse reconhecimento de que o Poder Legislativo possuía uma dimensão que transcendia a dinâmica institucional, abarcando os espaços públicos formados durante os processos de inde|pendência na região, seria digno de nota, não fosse o fato de que a coletânea, como um todo, não concretiza essa premissa. A maioria dos textos que compõem a obra – exceção feita aos capítulos de Inés Quintero e Rogelio Altez, sobre a Venezuela, e de Marta Irurozqui, sobre a Bolívia, que se valem da imprensa como uma variável importante para o desenvolvimento da política parlamentar nos referidos países – pouco ou nada leva em conta os espaços extraparlamentares que influíam direta e indiretamente para o funcionamento dos congressos nacionais.

Isso, na realidade, faz parte de um problema maior que acompanha o enquadramento adotado em El tribunal de la soberanía. É notório que os textos da coletânea muitas vezes isolam o mundo da política – e por consequência, do próprio Estado – das outras variáveis históricas que permearam as disputas políticas nas jurisdições em questão. Se, por um lado, os textos trazem referências ao papel de grupos sociais diversos (especialmente, eclesiásticos e militares) para a delimitação das agendas dos congressos nacionais, o mesmo não pode ser dito sobre a economia, levada em consideração somente no capítulo de Elvira López Taverne sobre o Chile. Tal opção vai na contramão daquilo que diversos autores vêm apontando nas últimas décadas: a inserção das nações latino-americanas na economia-mundo capitalista foi um elemento central dos‍‍‍ processos de formação dos Estados nacionais na região. Longe de serem compostos exclusivamente por membros de uma elite política apartada das bases materiais da sociedade, os Legislativos (e muitas vezes os Executivos e os Judiciários) dos países da América Latina foram ocupados por homens que tinham um pé fincado no mundo da produção e circulação de mercadorias e outro no mundo dos regimes constitucionais.

Ao ignorar essa dimensão, tão política quanto a‍‍‍ parlamentar, El tribunal de la soberanía parece retomar, ainda que indiretamente, alguns dos pressupostos explicitados por Theda Skocpol em seu famoso Bringing the State Back In (1985). Na introdução da obra em questão, a socióloga norteamericana se concentrou na dimensão deliberativa do Estado para defender a possibilidade – ainda que não de forma estrutural – de sua »autonomia« frente à realidade que o circunda. Mesmo dando mais atenção ao caráter constitutivo dos Estados latino-americanos que a própria Skocpol – mais preocupada com questões teóricas e programáticas‍‍‍ –, o‍‍‍ livro organizado por Marta Irurozqui acaba caindo no mesmo equívoco. Para evitá-lo, os autores da coletânea teriam que tomar, por exemplo, seus respectivos Estados não como unidades de análise, mas como unidades de observação pertencentes a um todo maior: o sistema interestatal, que se encontrava em franca expansão na primeira metade do século XIX, quando passou a orbitar em torno da Grã-Bretanha.

Essa perspectiva permitiria, igualmente, repensar a circunscrição da obra aos países latino-americanos que adotaram a forma republicana de governo. Para ficar apenas em um exemplo – quiçá, o mais notável –, o processo de formação do Império do Brasil compartilhou uma série de semelhanças com seus vizinhos. Nas décadas que se seguiram à independência brasileira, a ex-colônia portuguesa vivenciou acaloradas disputas políticas entre partidários de um sistema federalista e defensores de um Estado mais centralizado, que resultaram em importantes reformas na Constituição de 1824; registrou presença decisiva de padres e outros membros do clero no Parlamento (e, em certos momentos, também no Executivo); conviveu com seguidos conflitos entre Executivo e Legislativo pelo protagonismo político nacional; teve a composição das legislaturas de sua Câmara dos Deputados vinculada à falsificação dos pleitos eleitorais; e viu sua política parlamentar ser agitada por uma série de sublevações e revoltas, tanto de setores populares como de membros da elite. Em que pese a adoção de uma monarquia constitucional pelos construtores do Estado imperial brasileiro, não restam dúvidas que seu Legislativo teve uma importância equivalente ao das repúblicas latino americanas sobre os destinos do país. Nada mais lógico, portanto, que incluir o caso brasileiro ao conjunto do continente.

A despeito dessas lacunas, é notório que El tribunal de la soberanía possui plenas condições de ser incluído na bibliografia obrigatória para aqueles que estudam o processo de construção dos Estados nacionais na América Latina. Para além das ricas informações de teor empírico que os ensaios proporcionam ao leitor, a coletânea fornece uma série de contribuições e ensejos para que futuros historiadores desenvolvam novas abordagens capazes de explicar um fenômeno de dimensões globais e feições locais.

Notes

* Marta Irurozqui (coord.), El tribunal de la soberanía: el poder legislativo en la conformación de los Estados: América Latina, siglo XIX, Madrid: Marcial Pons, 2020, 264 p., ISBN 978-84-9123-747-1