Raça, escravidão e liberdade na história do direito*

[Race, Slavery and Freedom in Legal History]

Bruno Lima Max Planck Institute for Legal History and Legal Theory, Frankfurt am Main lima@lhlt.mpg.de

Becoming Free, Becoming Black: Race, Freedom and Law in Cuba, Virginia, and Louisiana é um livro que veio para ficar. Escrito a quatro mãos, em notável esforço cooperativo, Alejandro de la Fuente e Ariela J. Gross apresentam uma síntese histórica de quatro séculos, alicerçada em um volume assombroso de fontes primárias, argumentando como se deu a construção da raça enquanto categoria jurídica de diferenciação social em três sociedades escravocratas do mundo Atlântico. Subvertendo o usual e esquemático modelo comparativo restrito ao exame semântico de normatividades entre jurisdições distintas, de la Fuente e Gross tomaram outro caminho para escrever uma história do direito comparada da escravidão e da liberdade nas Américas. Os autores optaram, em suma, pela leitura criativa da imensa e multilíngue documentação legal e administrativa colhida em arqui|vos de Cuba, Espanha e dos Estados Unidos para contar a história do direito, da raça e da liberdade nas três jurisdições analisadas. São os núcleos dos conflitos em primeiro grau, portanto, e não legislações e regulamentos isolados, o locus por excelência do complexo jogo de forças de criação de direitos e regimes raciais nas Américas. O resultado da obra é admirável: uma história do direito a partir dos subalternos que não descuida, contudo, da explicação de mudanças estruturais em longa duração, desde a colonização das Américas, no início do século XVI, atravessando a Era das Revoluções, até chegar na conturbada década que assistiu a Guerra Civil dos Estados Unidos.

O livro é dividido em cinco capítulos, que, para além das temporalidades inerentes a cada um, cobrem três grandes faixas temporais: de 1500 a 1750 (capítulos 1 e 2); de 1760 a 1830 (capítulos 3 e 4); e, finalmente, de 1830 até a turbulenta década de 1860 (capítulo 5). O primeiro capítulo é dedicado às bases da racialização no direito no Antigo Regime espanhol, francês e inglês nas colônias de Cuba, Louisiana e Virgínia. De la Fuente e Gross demonstram como o repertório de ideias raciais presente em cada uma das tradições jurídicas envolvidas na colonização informou as autoridades locais a policiar e regular trânsitos, espaços e fronteiras de pessoas não só conforme o seu respectivo estatuto jurídico, mas especialmente conforme o seu marcador racial e pertencimento ancestral. Nesse sentido, os autores destacam como autoridades cubanas utilizaram o conteúdo normativo de posturas policiais de cidades europeias, e.g., Sevilha e Lisboa, para restringir mobilidades em razão da cor da pele; o conceito de limpeza de sangue para segregar racialmente as hierarquias coloniais; e o repertório das Siete Partidas como fontes para a construção do racismo. Tudo isso expressava uma empresa colonial que associava branquitude (whiteness) com direitos e privilégios‍‍‍ e negritude (blackness) com escravidão. Na Louisiana, as regulações raciais tomaram de empréstimo experiências normativas de outras jurisdições do império francês, sobretudo das Antilhas francesas, que culminariam no Code Noir de 1724, estrangulando pretensões de liberdade, casamentos inter-raciais, além de coerção racialmente orientada. Na‍‍‍ Virgínia, ainda que sem tradição jurídica ibérica‍‍‍ ou francesa, os autores notaram como a elite escravocrata local astuciosamente incorporou ao seu repertório colonial inglês escravista o princípio do partus sequitur ventrem como meio de vincular e‍‍‍ transmitir o status de escravizado baseado na ascendência africana.

No segundo capítulo, os autores exploram as múltiplas possibilidades de se obter alforria e em se reconhecer o casamento inter-racial no período pré-revolucionário. Embora nesse particular o caso cubano destoasse um pouco mais das colônias que viriam a formar os Estados Unidos da América, paradoxalmente, ele passaria a influenciar as expectativas de liberdade – e o medo senhorial – nas regiões vizinhas. Se em Cuba havia chances de se alcançar a alforria mediante pagamento, por verba testamentária, coartação e liberalidade de terceiros, entre outras formas, além de haver certa permissibilidade senhorial quanto a casamentos que cruzassem fronteiras de marcadores raciais, o cenário era bastante diferente tanto na Louisiana quanto na Virgínia. Nestas jurisdições, os legisladores locais repetidas vezes restringiram eventuais entendimentos que viessem a resultar em alforrias ou casamentos entre pessoas de linhas raciais distintas.

No terceiro capítulo, de la Fuente e Gross oferecem um excelente quadro sobre como as demandas de liberdade, notadamente as alforrias, tomaram as cortes e os juízos nas agitadas décadas revolucionárias. Ao passo em que comunidades de libertos negros se tornavam significativamente maiores, sobretudo em Havana e Nova Orleans, escravizados negros e pardos acuradamente compreenderam o instável momento político, que eventualmente poderia resultar no colapso da escravidão, e pressionaram as instâncias legais por liberdade e direitos. A relação entre população negra liberta e escravizados que requeriam sua liberdade seria explosiva e instigaria uma espécie de aceleração histórica de um processo coletivo de mudança de estatuto civil. De la Fuente e Gross ainda sublinham a emergência de argumentos jurídicos que os escravizados passariam a lançar mão em suas demandas por liberdade. Até mesmo no bastião escravocrata que era a ex-colônia, agora estado, da Virgínia, ecos revolucionários deram novo impulso à ação dos subalternos. De posse de um sofisticado conhecimento normativo, escravizados arguiam que possuíam ancestralidade indígena, e não africana, de modo que deveriam ser considerados livres nos termos de lei que proibia a escravização de índios. Em Cuba, formas seculares de aquisição ou reconhecimento de liberdade foram reforçadas com novos instrumentos legais, sendo cada vez mais comum a figura do curador como auxiliar da justiça, além do estabelecimento |da coartação como praxe respeitada nos juízos. Na Louisiana, que começara a Era das Revoluções recém saída do domínio francês, sendo então regida pelo império espanhol, para depois ser incorporada como um dos estados republicanos membros dos Estados Unidos da América, o turbilhão revolucionário também impactou – e foi alimentado por – ações de escravizados, que criativamente amalgamavam expertises libertárias de diferentes repertórios normativos.

No capítulo quarto, os autores enfocam a reação das elites escravocratas às avenidas de liberdade abertas nas décadas anteriores. No estado da Louisiana, surgiram restrições legais de acesso a alforrias. Na Virgínia, reformas escravistas ocuparam o processo legislativo local, chegando ao ponto de a constituição estadual retirar a força normativa de alforrias outorgadas se os ex-escravizados permanecessem no território do mesmo estado. Em Cuba, por sua vez, autoridades da colônia discutiam abertamente meios coercitivos para reprimir as comunidades de negros livres ou libertos. No quinto e último capítulo, de la Fuente e Gross detalham o projeto de construção de regimes raciais mediados pelo direito. Em Cuba, por exemplo, a segregação racial podia ser vista no acesso à terra e à educação. Na Louisiana e na Virgínia dos anos que antecederam a Guerra Civil, diversas normatividades foram efetivadas no sentido de segregar a vida social de negros – independentemente de seu estatuto civil. Severas limitações ao acesso à educação, à formação de comunidades religiosas e à constituição de patrimônio foram tomadas pelas suas respectivas elites escravocratas.

De la Fuente e Gross apresentam distintas regulamentações racialmente orientadas que vinculavam tacitamente o negro à escravidão e o branco à cidadania. Aos primeiros, relacionavam o estigma da escravidão à cor negra de suas peles; quanto aos segundos, em sinal perversamente invertido, era a cor branca de suas peles o que os qualificava para o exercício da vida civil. Sem perder de vista as singularidades de cada sociedade, o que se nota quando os autores apontam com clareza a fluidez dos marcadores raciais de Cuba, de la Fuente e Gross também reforçam em muitas passagens a ideia central do livro: a de que são as leis da liberdade – e não as da escravidão – as que expressam tanto a complexidade de um processo conflituoso de criação e transformação de direitos, quanto a construção de regimes jurídicos racializados. Nisso reside outro grande mérito do livro, qual seja, revisar a dicotomia entre escravo e cidadão, conhecida tese de Frank Tannenbaum, propondo e sustentando a variável da raça não como algo secundário, mas senão como um fator constituinte do direito e dos estatutos jurídicos individuais no Antigo Regime e na Modernidade.

Becoming Free, Becoming Black certamente se firma como leitura obrigatória para estudiosos da história do direito e da história social da escravidão nas Américas. A sólida pesquisa em fontes primárias, aliada a um argumento original, entre outras qualidades, fazem do livro uma referência de excelência ao debate historiográfico sobre racismo e direito – tanto no passado quanto no presente. Paradoxalmente, contudo, como aliás um grande livro costuma sinalizar ao futuro, Becoming Free, Becoming Black também provoca os leitores para os limites metodológicos da chamada social history from below, tema que certamente ocupará a agenda dessa e da próxima geração de historiadores da escravidão e da liberdade no mundo Atlântico.

Notes

* Alejandro de la Fuente, Ariela J. Gross, Becoming Free, Becoming Black: Race, Freedom, and Law in Cuba, Virginia, and Louisiana, Cambridge/New York: Cambridge University Press 2020, 295 p., ISBN 978-1-108-48064-2