Histórias do saber jurídico a contrapelo*

[Histories of Legal Knowledge Against the Grain]

Airton Ribeiro da Silva Jr. Universidade Federal de Pernambuco ribeiro.airton@hotmail.com

Tende-se a conceber o direito como um saber que, ao longo dos séculos, foi manejado por um grupo muito restrito do ponto de vista social. Uns‍‍‍ poucos profissionais que formaram uma elite letrada e instruída nos herméticos meandros do discurso jurídico. O livro organizado pela historiadora do direito finlandesa Mia Korpiola, no entanto, desestabiliza essa imagem. Ao revelarem práticas de produção e apropriação do saber jurídico às‍‍‍ margens do direito erudito, os artigos presentes no livro sugerem que esse grupo que, de alguma maneira, lidava com o direito foi ligeiramente maior do que tradicionalmente se confiou. Cada capítulo desvenda um mundo particular de profissionais e de caminhos para a educação jurídica que não costumam povoar as narrativas sobre o passado jurídico.

O livro oferece ao grande público investigações apresentadas três anos antes em Turku durante o seminário ›Learning Law by Doing: Exploring Legal Literacy in Premodern Societies‹. O âmbito geográfico coberto pelos trabalhos é amplo, reunindo várias ›Europas‹. Há tanto experiências ›centrais‹ do Sacro Império Romano-Germânico, França e Itália, quanto da distinta Inglaterra ou mesmo da Suécia e Finlândia nas ›bordas‹ da Europa. Igualmente largo é o arco temporal que se estende do medievo às vésperas do Estado liberal. A despeito dessa variedade espacial e cronológica, os artigos encontram unidade na potente ideia de letramento jurídico (legal literacy). Com o declarado propósito de ampliar a perspectiva concernente às profissões jurídicas, e os respectivos meios de instrução para alcançá-las, o letramento jurídico, compreenderia, conforme adianta Mia Korpiola na introdução, o‍‍‍ conhecimento acerca do direito, bem como habilidades jurídicas. Tal definição, por si só, não seria útil não fosse sua apreensão em graus de uma escala entre dois extremos, do completamente letrado ao completamente iletrado, que permite compreender o grau de letramento jurídico de qualquer pessoa do passado em contato com o direito.

Os cinco artigos que compõem a primeira parte do livro enfocam na prática como meio de aquisição do saber jurídico, revelando uma quantidade de agentes intermediários que gravitavam no entorno da justiça letrada. Enquanto um período como aprendiz de escrivão, conforme delineado por Kitrina Bevan, poderia capacitar um inglês medieval para exercer a atividade, um estágio no Tribunal da Câmara Imperial, como demonstrou Anette Baumann, conferia conhecimento e distinção suficientes para ser um procurador leigo. Marianne Vasara-Aaltonen nos apresenta uma Suécia do século XVII onde a administração da justiça ainda não havia atingido o grau de profissionalização de outros vizinhos europeus, e até mesmo em altas cortes, a magistratura popular era encontrada. A escassez de juízes letrados, impunha a experiência prática como principal meio para aquisição dos conhecimentos e habilidades necessários à atividade do juiz. No mesmo período, a situação da administração da justiça na Finlândia, que estava sob domínio sueco, não era distinta. Petteri Impola nos ilustra esse contexto com a história de Gabriel Abrahamsson que sem estudos universitários, nem origem nobre, era estimado em sua cidade como procurador leigo. Fechando a unidade, Anna Kuismin, em uma perspectiva desde baixo, parte de histórias de pessoas comuns que foram empoderadas pela valorização do finlandês frente a língua sueca, até então oficial na administração e educação. Tais narrativas permitem observar como, no contexto da emergência do nacionalismo na Finlândia do século XIX, a apropriação de letramento jurídico, permitiu a ascensão social permitindo o envolvimento com a administração local.

Na segunda parte do livro, o protagonista é o livro jurídico. Não aqueles vários volumes de tratados escritos em latim que porventura formavam o direito erudito, opaco aos não-iniciados, mas o livro jurídico popular. Tanto o artigo de Annamaria Monti, que parte de uma perspectiva comparada entre os mundos italiano e anglo-americano, quanto no de Laetitia Guerlain e Nader Hakim, focali|zado no espaço francófono, recuperam esse gênero da literatura. A literatura jurídica pragmática vem recebendo maior atenção por parte da historiografia, justamente por conter importantes vestígios sobre o uso do saber jurídico nas dinâmicas da vida cotidiana. Escrita não para juristas treinados, o propósito desse gênero era justamente facilitar o acesso ao conhecimento jurídico. Logo, constituíam-se em um importante meio de aquisição de letramento jurídico. Não é fortuito, então, que tais livros pragmáticos estivessem nas prateleiras das bibliotecas privadas de funcionários da administração pública de pequenas cidades finlandesas sob domínio sueco, como aborda Mia Korpiola em seu artigo. Partindo de uma cuidadosa análise de inventários post-mortem do século XVIII, a autora rastreia a difusão do livro jurídico de modo a compreender o tipo de livro jurídico que compunha a coleção de diferentes pessoas sem educação jurídica formal.

Como um todo, o que se propõe com o livro em questão é, partindo da categoria letramento jurídico, ir além da obviedade do direito erudito e da justiça letrada presente nas altas cortes. Descentrar o olhar, porém, não é tarefa simples. Transparece em vários artigos a dificuldade em encontrar fontes que permitam a análise dessa cultura jurídica não oficial, bem como os limites que as fontes acessíveis apresentam. Anette Baumann, por exemplo, contorna a falta de fontes sobre a Reichskammergericht com um escrito autobiográfico, fonte tão valiosa quanto rara. Mia Korpiola mostra-se consciente dos limites impostos pelas fontes ao advertir que os livros listados em inventários não implicam na leitura e manuseio, e podem ainda ter sido incluídos na coleção pouco antes da morte do possuidor. A despeito desses desafios, os autores mostram que é possível escrever uma história do direito mais compreensiva e adequada à compreensão do fenômeno jurídico no descentralizado Antigo Regime.

Nesse ponto, o letramento jurídico mostra-se categoria particularmente profícua para a apreensão do direito em contextos periféricos, onde o direito erudito era uma realidade distante e a justiça local se realizava pelas mãos amadoras de juízes leigos, escrivães, rábulas e meirinhos. Ao historiador do direito que lida com vastos e plurais espaços coloniais – penso aqui, particularmente, nos Impérios Ibéricos – é difícil não encontrar um paralelo com o contexto descrito por Marianne Vasara-Aaltonen. Ou ainda, pensar na importância da literatura jurídica popular e pragmática, descrita por Annamaria Monti, Laetitia Guerlain e Nader Hakim, em lugares – como a América Portuguesa – em que não havia universidades a prover instrução jurídica formal.

Seguindo o legado de Savigny, a historiografia jurídica manteve por muito tempo certa preferência pela história do direito escrito e cultivado pelo seleto grupo de juristas treinados. As histórias narradas no livro preparado por Mia Korpiola, tomando emprestado a expressão de Walter Benjamin, escovam essa história a contrapelo, revelando que o saber jurídico não era monopólio exclusivo das profissões jurídicas, mas parte das práticas cotidianas de sociedades passadas. Legal Literacy in Premodern European Societies fornece algumas ferramentas para quem se propuser a explorar esses mundos.

Notes

* Mia Korpiola (ed.), Legal Literacy in Premodern European Societies, Cham: Palgrave Macmillan 2019, 264 p., ISBN 978-3-319-96862-9